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quinta-feira 30 maio 2024
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O bem maior

• Gerson Sestini – Rio de Janeiro/RJ
O cenário era constrangedor. Os fatos me surgiam na mente em rápidas pinceladas, levando-me a despertar para os quadros que surgiam em volutas.
Em plena guerra, na escuridão da madrugada, depois da trégua do bombardeio, o jovem clama sem poder expressar-se verbalmente: “Deus! Esqueceste-nos? É isso a vida que me deste neste mundo? Uma existência sem esperanças? Sou teu filho. Minha família, agora, está reduzida a meus avós. O que será de nós?” Grossas lágrimas escorrendo pelas faces atestam seu desespero. Deitado no gélido porão, ao lado de seus ancestrais que repousam, de repente sente-se envolvido por poderosas e indefiníveis sensações que o fazem perder as forças, levando-o a profundo torpor. Sua consciência em outra dimensão como que o desperta, tendo diante de si seu professor, o senhor que ensinara-lhe as primeiras letras e que, em seu coração assumira a personalidade paterna que não conhecera. “Meu menino, acalme-se, apesar de tantas lutas e sofrimentos eu digo que a vida é a maior dádiva que recebemos do Pai Celestial. Deus atende a todos os seus filhos, não esquece nenhum deles, inclusive aqueles que você erroneamente aprendeu como sendo seus inimigos. Deus ama a toda humanidade…”
Em prantos, o rapaz consegue dizer: “O senhor é o pai que não tive e que agora Deus me envia. Diga-me, o que devo fazer?…”
Depois de um tempo, do qual não temos parâmetros para saber se curto ou longo, aquela amorosa entidade, tendo seu ‘menino’ descansando sobre seu peito, fala-lhe: “Você sobreviverá a mais esta catástrofe imposta ao nosso povo pelos maus governantes das nações. Procure tirar de seu coração a aversão que sente por aqueles a quem chama de inimigos. Não deixe a esperança morrer diante dos dias escuros. Terás ainda que enfrentá-los.”
Nos seus dezessete anos, aquele adolescente desgastado pelas dores da Grande Guerra deita-se sobre o peito do professor e confessa-lhe: “Com o senhor assim, amparando-me, eu poderia tentar, mas estou só: eu e meus avós que sequer conseguem caminhar. Como poderei? O que fazer, mestre? Não temos mais o que comer. O dinheiro que o avô dispunha acabou. Não tenho como conseguir algo que nos sustente…”
O amorável espírito, tornando-se mais luminoso, abraça-o fazendo seus corações se tocarem. Olhando-o firmemente, orienta-o:
“O dia não tarda a surgir. Os agressores se afastaram. Assim que clarear, vá procurar o grupo de voluntários para ajudar a resgatar as vítimas do bombardeio. Pense em Deus, para que Ele esteja sempre ao seu lado, acompanhando-o, embora não possa vê-Lo. Entregue-se ao trabalho humanitário, por mais árduo que seja, sem esperar recompensa, pois o Pai Celeste a tudo proverá. Se sentir fome, pense n’Ele e ela diminuirá para que você a suporte; vendo outros em piores situações que a sua, a caminhada será menos espinhosa, seu amor à causa do Bem crescerá e acabará por triunfar na confiança que irá sentir.”
Aquelas palavras, infundindo-lhe confiança, serviram-lhe posteriormente como lema de vida, pois trazia a assinatura do Bem Maior proposto por Jesus. Quando o sol raiou, depois de atender as necessidades dos avós, o rapaz confortou-os dizendo-lhes que um ‘anjo’ lhe aparecera em sonho e indicara-lhe o que fazer; iria se juntar aos que buscavam trabalho e que voltaria com algum alimento para casa, que confiassem em Deus.
E a clemência divina não faltou àqueles seres colocados em extrema penúria pelos altos e baixos da existência neste mundo. O jovem encontrou o grupo que procurava as vítimas do bombardeio e apresentou-se como voluntário. “Você, assim tão jovem, depauperado… como quer nos ajudar?” disse o comandante daqueles heróis anônimos. “Agindo no bem; esta é minha proposta. Posso começar?” O homem admirou-se de sua fala determinada e escalou-o para servir.
O dia passou-se em busca de sobreviventes entre os escombros, pois os cadáveres seriam recolhidos por outro grupo. Entre os encontrados três se destacavam: uma menina abraçada à sua boneca ao lado de sua mãe morta, um senhor de meia-idade com fratura exposta, preso a cruciantes dores e um casal, cuja mulher que insistia em reavivar o esposo que agonizava, acabando este por morrer em seus braços. O jovem pensava em Deus todo o tempo pedindo-lhe que os ajudasse, tentando isolar-se emocionalmente dos dolorosos quadros que encontrava para poder continuar a auxiliar.
Ao darem por terminada a jornada, dirigiram-se à organização socorrista. Todos receberam alimentos. Falando de seus avós, recebeu uma quantia maior e a promessa de procurá-los no dia seguinte para minorar suas necessidades.
A esperança e a fé em Deus nunca mais se ausentaram daquele coração. A superação da dura provação passada na guerra, ao agir no bem, e a certeza da interferência do plano espiritual a nos socorrer, serviram-lhe como bússola em toda sua vida.