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quarta-feira 21 maio 2025
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Giramundo – A Loira do Banheiro

Dizem que, entre as brumas do Vale do Paraíba, mora uma lenda que atravessa os séculos como um sussurro nos corredores vazios das escolas. Mas, ao contrário do que contam nas conversas apressadas dos recreios, essa história tem nome, tem rosto — e tem endereço. Seu ponto de partida é Guaratinguetá, terra das garças brancas e de antigos casarões que guardam mais do que poeira sob os assoalhos.

Foi ali, em tempos de Império, que nasceu Maria Augusta de Oliveira, filha do Visconde de Guaratinguetá. Cresceu entre sedas, pratas e olhares calculistas. Com apenas quatorze anos, foi entregue, como se entrega uma herança, ao Conselheiro Francisco Dutra — homem de prestígio e muitos anos a mais. Professor da renomada Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Dutra era homem de ideias firmes e afeto frio. O casamento, articulado com o apoio do próprio Conde d’Eu, marido da princesa Isabel, parecia mais uma jogada de xadrez do que um laço de amor.
Maria Augusta, porém, jamais foi peça passiva. Tinha olhos inquietos e espírito inquieto. Três anos após o casamento, com o luto ainda fresco pela morte do pai, ela tomou uma decisão que escandalizou salões e cochichos de toda a Corte: fugiu. Juntou joias, memórias e mágoas, e partiu para a França. Lá, finalmente livre, tentou escrever uma vida longe dos grilhões do dever imposto. Mas o destino, esse velho dramaturgo cruel, tinha outros planos.

Foi em Paris que Maria Augusta adoeceu. Contraiu hidrofobia — a raiva humana —, uma doença que, quando se manifesta, não dá segunda chance. Os relatos falam de delírios, pânico de água, sede insuportável. E então, o fim.
Seu corpo foi embalsamado e enviado de volta à Guaratinguetá. A mãe, arrasada, não quis sepultá-la de imediato. Ordenou que a filha fosse colocada em um dos aposentos do velho casarão da família. Por dias — talvez semanas, ou meses, ninguém sabe ao certo —, Maria Augusta repousou em silêncio entre as paredes que um dia assistiram à sua infância. E ali começou a nascer a lenda.

Criados contavam que, à noite, vozes pediam por água. Visitantes saíam pálidos, alegando terem sentido a presença da jovem. E então veio o sonho: a mãe, solitária, sonhou com a filha, pedindo, com olhos de dor, que fosse finalmente enterrada. Não suportava mais aquele exílio frio, o desfile de olhares curiosos, a sede que não passava.
Atendendo ao chamado do além, a mãe mandou erguer uma capela no terreno, com uma redoma de vidro onde, enfim, o corpo da filha foi colocado. Mas a paz que se buscava não foi encontrada.

Anos depois, o casarão foi vendido ao governo do estado. O que fora lar e mausoléu virou escola: a hoje conhecida Escola Estadual Conselheiro Rodrigues Alves. E foi ali, entre os novos ruídos de passos apressados, que Maria Augusta voltou.

Começou com sussurros nos corredores, portas que batiam sozinhas, torneiras que se abriam sem mãos. Depois vieram os gritos — relatos de uma moça de cabelos dourados vagando pelos banheiros, pedindo por água, assombrando alunos que ali se escondiam em tentativas de matar aula. Funcionários passaram a recusar plantões noturnos. Alguns iam embora antes do tempo, outros largavam o trabalho de vez.

O diretor, cético e irritado, convocou uma reunião. No auge da conversa, quando tentava impor ordem, o lustre da sala despencou sobre sua mesa, por um fio de segundos não lhe acertando em cheio. Depois disso, ninguém mais ousou ficar na escola depois das cinco da tarde.

A história correu como fogo em campo seco. Passou de boca em boca, de cidade em cidade, ganhou novas versões, novos nomes, novos medos. Mas em Guaratinguetá, alguns ainda lembram que, antes de ser um mito escolar, a Loira do Banheiro foi uma menina forçada a casar, uma jovem sufocada pelas convenções, uma alma sedenta de liberdade — e de água.
E dizem que, até hoje, quando uma torneira pinga sozinha ou o espelho do banheiro embaça sem motivo, é Maria Augusta que volta. Não para assustar — mas para lembrar que nem toda dor morre com o corpo.

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Oswaldo de Campos Macedo é professor de História e Fotógrafo