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quinta-feira 16 maio 2024
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Direito Animal – De animais a humanos: os transplantes-xenotransplante e os direitos dos animais

Direito Animal – De animais a humanos: os transplantes-xenotransplante e os direitos dos animais

Um caso recente nos EUA, em que um homem morreu após receber o coração de um porco, reacendeu o debate ético e científico em torno da transferência de órgãos entre espécies
Em 2021, foram realizados 41.354 transplantes de órgãos de humanos para humanos. Ainda assim, só nos Estados Unidos, 100 mil pessoas esperam sua vez na fila dos transplantes e, todos os dias, 17 pessoas morrem enquanto esperam um órgão novo, já que as doações são insuficientes para todos.

O xenotransplante – ou transferência de células, tecidos e órgãos entre espécies – tem a ambição de resolver essa escassez. Um exemplo recente desse tipo de técnica envolveu o transplante de coração de porco para um humano. O paciente, operado Universidade de Maryland, em Baltimore (EUA), morreu poucos dias depois da cirurgia: o órgão estava infectado por um vírus suíno, o porcine cytomegaloviru, segundo afirmou mais tarde o médico responsável pela operação.

Xenotransplantes: como porcos podem ser o futuro dos transplantes de órgãos – BBC News Brasil
“Perdido nesse potencial ilimitado está o significado da divisão humano-animal. Pessoas andando com órgãos de porco – como ciborgues humanos-animais – podem parecer distópicas. E com o vírus zoonótico Sars-CoV-2 matando mais de 6 milhões de pessoas, violar o limite entre humanos e animais pode ser catastrófico”, escreveu ao The Guardian o pesquisador em História da Saúde, Simar Bajaj.

Bajaj conta que o xenotransplante tem origens muito antigas. Na França e na Inglaterra do século XVII, ocorriam transfusões de sangue de animais para humanos para “curar” uma série de condições médicas.

O ato tinha significado espiritual: “Já que Cristo é o cordeiro de Deus”, escreveu um destinatário em uma carta à Royal Society, “o sangue de ovelha possui uma relação simbólica com [seu] sangue”. A febre violenta de um paciente foi supostamente curada, enquanto pelo menos outros dois morreram logo após essas xenotransfusões.

Embora os xenotransplantes de células e tecidos tenham sido realizados há séculos, transplantes de órgãos inteiros eram mais complexos. Em 1964, James Hardy, cirurgião da Universidade do Mississippi, tentou transferir o coração do chimpanzé Bino para o peito de Boyd Rush, de 68 anos – mas o paciente sobreviveu por apenas 90 minutos, já que o órgão foi rejeitado pelo seu corpo. Em 1984, cirurgiões da Universidade Loma Linda, Califórnia, transplantaram um coração de babuíno do tamanho de uma noz no peito de Fae, bebê de 12 dias com síndrome do coração esquerdo hipoplásico. Dessa vez, a operação pareceu bem-sucedida: a criança viveu por 21 dias, comendo e chorando, até que seu sistema imunológico rejeitou o coração.

Naquele momento, já ocorriam manifestações contra esse tipo de prática, especialmente por parte de organizações defensoras dos direitos dos animais e de outros médicos-especialistas. Após a morte de David Bennett, que recebeu o coração suíno infectado em março deste ano, o Peta, ONG norte-americana de proteção dos direitos dos animais, emitiu uma nota de repúdio ao procedimento: “O risco de transmissão de vírus originados em animais através do xenotransplante é uma ameaça real (…) tais procedimentos são cruéis – para animais e humanos à espera de órgãos – e perpetuam o mito de que um dia o xenotransplante será prático”. Segundo a entidade, “leis de consentimento presumido e medidas preventivas de saúde salvarão mais vidas do que cirurgias de manchete (…) transplantes de animais para humanos são antiéticos, perigosos e um desperdício de recursos que poderiam financiar pesquisas com potencial real de ajudar humanos”.

Porcos são animais altamente inteligentes e capazes de demonstrar emoções. “Eles gostam de brincar, são gênios em navegar labirintos e podem ser mais espertos que cães e chimpanzés, de acordo com seus testes de QI”, explica Bajaj. Após o caso do bebê Fae, os primatas foram substituídos por porcos em xenotransplantes – especialmente por os suínos serem mais facilmente manipulados geneticamente e por serem mais facilmente criados em “ambientes estéreis”, que supostamente reduzem infecções. Para utilizar o órgão de um porco para transplante, é necessário modificá-lo geneticamente e neutralizar quatro genes específicos de porcos – que geram reações imediatas do corpo humano. O trabalho é realizado por empresas como a Revivicor, de biotecnologia, com sede na Virgínia, EUA. Além disso, os porcos doadores são criados em cativeiro, em ambientes sem janelas e contato com o mundo externo – para evitar infecções de patógenos.

Brad Bolman, historiador da ciência da Universidade de Chicago, explicou ao The Guardian que outros animais – como as ovelhas – também poderiam ter sido considerados adequados. A realidade é que os porcos são “social e economicamente convenientes”, segundo ele. “Eles produzem grandes ninhadas rapidamente, com leitões atingindo o tamanho adulto em seis meses. Há também um suprimento quase ilimitado deles – 700 milhões em todo o mundo – e como são animais agrícolas, não se encaixam na Lei [norte-americana] de Bem-Estar Animal”, argumenta, e complementa: “Os ideais científicos foram construídos retroativamente para fazer com que os porcos parecessem a escolha certa”. “Tratamos os porcos de maneiras que nunca trataríamos as pessoas, mas também reconhecemos que eles são tão semelhantes a nós que são nossos modelos”, concluiu ao jornal britânico Lisa Moses, bioética e veterinária da Harvard Medical School.

Segundo Simar Bajaj, muitos especialistas em xenotransplante minimizam preocupações éticas e utilizam a indústria global de carne suína como justificativa. O pensamento seria que, se os porcos vão ser comidos de qualquer maneira, eles também podem ser usados ​​para a ciência, “uma atividade mais valiosa e nobre”. Mas também possuem outro argumento: a fila com alta espera de pessoas que precisam de órgãos para sobreviver – apesar da técnica não ter perspectivas de ser uma solução viável por ora.

A pergunta que fazemos é, precisamos tirar vidas para salvar vidas?!

Tudo é apresentado como um avanço científico inquestionável que, segundo a instituição que realizou o transplante, pode ajudar a resolver a crise de escassez de órgãos para doação. Não é de hoje que porcos e outros animais são utilizados na medicina tendo (parte de) seus corpos retirados para uso em humanos. Como também não é recente a crítica por parte do movimento vegano e dos direitos dos animais sobre a utilização de animais em experimentos científicos e em aplicações na área da saúde.

Queremos contribuir para o debate sobre o por quê de escolher “salvar” algumas vidas humanas dessa forma. Para isso, pretendemos lidar com questões estruturais a partir da perspectiva de um veganismo popular, ou seja, buscando um diálogo com outros movimentos por justiça social.

O problema apresentado pela área médica é a falta de órgãos para doação. É criado um falso dilema – o de que é necessário usar algumas vidas para salvar outras, mostrando quais são as vidas que merecem ser salvas e quais as que existem para servir as outras. Porém, tal escassez poderia diminuir bastante se, por um lado, a demanda por órgãos fosse reduzida a partir de modificações nas condições que aumentam a prevalência de certas doenças e se a própria espécie humana fosse mais incentivada a doar e se o processo fosse mais desburocratizado. No entanto, há muitos interesses econômicos envolvidos na manutenção do status quo.

Segundo a Organização Mundial da Saúde as doenças cardiovasculares são a causa número 1 de mortes de pessoas em todo o planeta . A Sociedade Brasileira de Cardiologia calcula que doenças cardiovasculares causam o dobro de mortes que aquelas devidas a todos os tipos de câncer juntos, 2,3 vezes mais que as todas as causas externas (acidentes e violência), 3 vezes mais que as doenças respiratórias e 6,5 vezes mais que todas as infecções incluindo a AIDS . A maioria delas, contudo, pode ser prevenida por meio da abordagem de fatores comportamentais de risco – como o uso de tabaco, dietas não saudáveis e obesidade, falta de atividade física e uso nocivo do álcool –, utilizando estratégias para a população em geral, consoante também preceitua a Organização Pan-americana de Saúde

No caso específico das condições cardíacas que levam à necessidade de transplantes, a medicina também reconhece que parte dos casos está intimamente ligada a questões como alimentação e condições de vida. O excesso de alimentos industrializados e nutricionalmente pobres, a super-exploração no trabalho, a falta de acesso a equipamentos de lazer e tempo, tudo isso claramente afeta a saúde cardiovascular da população, e esse efeito incide particularmente nas populações marginalizadas. É por isso que acreditamos que, antes de mais nada, é essencial que ações de implementação de políticas públicas que contemplem essa visão multifatorial de prevenção das doenças recebam mais investimentos (incluindo apoio à produção e escoamento de alimentos saudáveis e sem veneno, como os agroecológicos) e por outro lado práticas incentivadoras de comportamento de risco coibidas (como por exemplo a interrupção de subsídios à indústria dos ultraprocessados, especialmente os embutidos, e possíveis tributações de compensação ao sistema público de saúde).

Enquanto se gasta um bom tempo e dinheiro convencendo o público de que entidades privadas, em nome da ciência, matando animais, vão salvar a humanidade, poderíamos – no caso do nosso país – investir no SUS, em pesquisa, em mudanças na legislação, campanhas educativas e ações de conscientização para o fortalecimento da atenção básica. Para além disso, como dito, deveríamos ter mais investimento no incentivo à doação de órgãos, assim como em pesquisas para novas técnicas de viabilização de transplantes de órgãos doados por outros em pesquisas para novas técnicas de viabilização de transplantes de órgãos doados por outros humanos.

A utilização de animais não humanos para nosso interesse tem como base uma segregação entre seres superiores e inferiores, somada à crença de que os primeiros têm legitimidade para usar os demais. Isso é especismo, um tipo de preconceito baseado na ideia de que a espécie humana é superior às demais. Nosso movimento tenta combatê-lo, como também as demais relações de opressão que surgem dessa ideia de que existe uma hierarquia que define as vidas que importam, inclusive entre os próprios seres humanos, como nos casos do racismo, do sexismo, do classicismo, do capacitismo, entre outros.

Voltando ao caso comentado, para que essa cirurgia específica ocorresse, centenas de animais sencientes – dentre eles, porcos geneticamente modificados e babuínos – nos quais os transplantes iniciais foram testados – foram trazidos para uma vida de privação e sofrimento numa operação conjunta entre a Universidade de Maryland e a empresa de biotecnologia Revivicor, que custou 15,7 milhões de dólares de financiamento público (5).

Desde a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em animais humanos e não humanos, de 2012, escrita por cientistas renomados, “não é mais possível dizer que não sabíamos”que muitos animais (dentre eles o porco do transplante) têm consciência, que sofrem e fogem da dor, como nós. O mundo gasta 20 bilhões de dólares por ano matando 100 milhões de vertebrados em pesquisas médicas. A probabilidade de um remédio ou procedimento advindo desses estudos ser testado ou funcionar em humanos é irrisória. Nos perguntamos porque esses recursos não são direcionados para o desenvolvimento de tecnologias que prescindam da submissão de outros animais a vidas de privação e sofrimento, como é o caso das pesquisas em impressão 3D de órgãos. Também defendemos que os avanços passem por um crivo de equidade no acesso às novas tecnologias.

A história da ciência tem muitos episódios de pesquisadores que se utilizaram de pessoas consideradas “inferiores” para produzir conhecimento às custas dessas vidas: homens negros pobres, habitantes de países subdesenvolvidos, mulheres, dentre outros, já foram vítimas da ciência humana . Embora não se tratem de experiências iguais, elas se interligam na mesma lógica de supremacia de umes sobre outres.

Hoje, nossa sociedade e a comunidade científica, em boa parte, já reconhecem esses erros em pesquisas no passado. Será que estamos distantes ainda de reconhecer e nos responsabilizar pelo que estamos fazendo com os animais não humanos? Queremos continuar fazendo ciência que naturaliza a existência de vidas mais importantes que outras? Queremos matar vidas para salvar outras? Ou optaremos por avançar na ciência e na biomedicina com um crivo ético, pautado no respeito tanto à equidade no acesso humano à saúde, quanto às vidas dos animais não humanos?

Precisamos, nesse sentido, lembrar que o avanço científico não é necessariamente democrático, principalmente num contexto capitalista: apenas um país (os Estados Unidos) vacinou mais do que todo o continente africano contra a COVID-19; apesar da altíssima tecnologia no campo para produção em larga escala de alimentos, ainda se convive com a fome; apenas em países pobres ainda morremos de dengue, chikungunya e leptospirose pela falta de saneamento básico. Diante disso, percebe-se facilmente que o avanço científico não é para todo mundo. Então, que construamos uma ciência democrática, antiespecista e sem negacionismo.