Search
segunda-feira 17 junho 2024
  • :
  • :

Comilanças Históricas e Atuais – Charlie e o irmão autista

Comilanças Históricas e Atuais – Charlie e o irmão autista

I – O motivo
Os dias nunca foram irmãos gêmeos. Eles nascem nas diferenças e nunca nas semelhanças. Essa semana, na movimentação das constelações mais racionais do que proféticas, resolvi assistir a um filme lindo, mas além da estética, canto das artes, que me apresentasse uma aula de interpretação, de gestos, de gritos presos na garganta, de movimentos livres ou encolhidos, que revelassem os segredos do ipê que esta plantado além do dragão que fugiu de São Jorge. Por todos esses motivos, escolhi o filme “Rain Man” de 1988.

II – Um passeio ao redor da noite
Vamos dar uma volta nas ruas de Atenas. Os teatros lavaram as almas nos rios; agora dormem lembrando das agonias que, como impulsionadas pelos deuses, transformam os ontens nos hojes eternos. Os circos não se mexem, os gladiadores já saíram dessa terra louca. Luta, espada, lanças, correntes, e o vencedor acredita que realmente é um herói. Vamos entrar na Academia de Platão, onde um estudioso das palavras explica a força, a violência, a paz, e o amor que habitam cada uma delas. Ele falava, quando entramos, de uma palavra saturada de mistérios, tratava-se da palavra “autos”, poucas letras, pequenas no tamanho, mas reveladora de uma vontade do criador. Essa palavrinha significa o motivo inerente a alguns seres humanos que conseguem entrar “em si mesmo”, e nessa interiorização, como um Van Gogh, pinta um novo mundo, singular e enigmático.

Acelerar os ponteiros dos relógios, convido, neste instante, que os meus leitores acelerem os seus marcadores do tempo, vamos brincar de Montanha Russa, para podermos gerar séculos e séculos. Vamos para o ano de 1887, na Inglaterra sem os Beatles, o cientista John Langdon usou, pela primeira vez, o termo “Idiot Savant-idiota prodígio” a um grupo de dez pessoas que apresentavam um distúrbio psíquico que os levava a genialidade e, também, à incapacidade de se vestir.
Em outro tempo, na esquina de uma estrela, no ano de 1908, no momento que um navio chamado “Kasato Maru”, saia do Japão trazendo o primeira leva de imigrantes para o Brasil, um princípio marcado pela dor, medo, esperança, despedida, o encontro com o Gigante Adamastor; um cientista suíço chamado Eugen Breuler, estudando um grupo de crianças que amavam o isolamento e o silêncio, o levou a sair do planeta, a navegar nas vizinhanças dos astros. Os seus pensamentos entendem que essas crianças viviam um mundo próprio, dentro delas, eram fugitivas do mundo normal para habitar as profundezas de seus próprios cérebros. Ele nomeou esse comportamento, essa síndrome de autismo. Pois aqui, nesse passeio tocado pelo vento e psicologia, somos obrigados a tomar um café no bar da esquina, pois encontramos os conflitos do filme “Rain Man”.

III – Os encontros reais, prováveis, fatídicos
O roteiro do filme Rain Man foi produzido por dois escritores da sétima arte, Ronald Baso e Barry Morrow. Essa colocação parece algo muito simples, porém, nos bastidores, dá vozes tentando levar a ação para um destino predeterminado.
Em 1984, um homem de nome Kim Peek, portador da Síndrome de Savant, dono de uma memória cinematográfica, conheceu o roteirista Barry Morrow. Esse moço, vivendo no mesmo mundo que todos nós vivemos, conhece de cabeça, todos os políticos dos 15 campos ideológicos, filósofos, estruturais e também os seus projetos, detalhe por detalhe. Com uma facilidade assustadora, citava o nome, os quilômetros, de todas as estradas estaduais americanas; memorizou a Bíblia, o Alcorão e toda a obra de Shakespeare, o único que entendeu os dois textos acima citados.

O mundo das ideias de Barry Morrow encontrou a base para criar o personagem Raymond Babbit, vivida no filme pelo fantástico Dustin Hoffmam que levou quase seis meses para compor o personagem.
A partir de um personagem autista, os escritores precisavam colocá-lo dentro de uma família. Esta família, como todas as famílias do infinito universo geram momentos de paz, de crença, de conflito, de oposições, de desarticulação nos choques educacionais. E no caso em tela, como incluir o autista sem alterar as identidades construídas em seu interior. Para representar as fisionomias da divergência tangível, não havia outro artista melhor que o ator Tom Cruise, vivendo no mundo de sonhos da fabulosa América.

IV – A sinopse de Rain Man
Um jovem Yuppie, vivido por Tom Cruise – Charlie Babbit, passa por momentos difíceis. A palavra Yuppie, no mundo empresarial americano, nomeia e rotula um jovem executivo, sonhador dentro do mundo, vivendo o círculo dos grandes investimentos. O seu produto colocado no mercado, mas muito comum, trata-se da venda de carros importados caríssimos. Ele está com problemas de entrega, alfandega, empréstimos vencidos nos bancos, um pé-de-vento que o leva a dever oitenta mil dólares, além dos carros.
A sua noiva trabalha com ele. Na relação amorosa dos dois não há lua, estrela, amor colhido no copo de lírio, os seus olhos, os seus lábios, os corpos, expressam o preço do dólar, a situação do câmbio, a mentira, a falsidade.

V – Morte sem toque de poesia
No meio desses tropeços, dos passos desorientados, Charlie Babbit, fica sabendo da morte de seu pai. Eles nunca de deram bem, os dias eram suportáveis, nebulosos, sem o mínimo sentido. Desde a morte da mãe, nunca mais os dois se avistaram, telefonaram, se falaram de alguma forma. No entanto, por interesse econômico, Charlie foi ao velório e enterro. Cemitério com alguns amigos distantes, orações pronunciadas sem vento, a terra cobrindo o corpo, a história, as lendas que nunca surgiram.

VI – O testamento sem cheiro de vida
Na leitura do testamento, pedaços de tempo, sem relógio precisos, Charlie Babbit herdou o famoso Buick 1949 e as roseiras do pai, paixão de uma existência, e premiadas em vários concursos. O seu irmão Raymond Babbit, que ele não conhecia, recebera três milhões de dólares. Esse irmão era autista e, desde a infância vivia como interno numa instituição médica e especializada no tratamento, na assistência psicológicas, nos processos pedagógicos e alimentares dos pacientes.

O mundo de Raymund é habitado por um sábio que, ao longo do tempo, vasculhou todos os planetas internos de sua alma, revelando o amor que existe entre os números, a literatura, os textos nascidos na imensidão dos desertos e nas grandes academias. Assistia aos programas de televisão, todos os dias e nos mesmos horários; almoça e jantava, cardápios variados, mas sempre os mesmos e nos mesmos horários, lia na demarcação do tempo, adorava panqueca de maças, mas a calda servida antes das panquecas. A sua cama ficava ao lado da janela, sempre; os funcionários ajudavam-no a tomar banho, barbear-se, calçar os sapatos, sempre no mesmo horário. À noite, sempre no bater dos sinos, ele dormia e sonhava, sempre os mesmos sonhos, agua quente e não machucar o Babbit.

VII – O ser e o não ser
No desespero econômico, na vida endeusada por uma minoria, no seu universo marcado pelo ter, pelo lucro, pela esperteza, pelos casinos, pelas mulheres sem limites de fronteiras, Charlie sequestra Raymond, tendo em sua cabeça puramente capitalista, a possibilidade de rever a sua parte na herança.

VIII – O combate e a práxis
Charlie não observava a cor do dia, o seu pulsar o levava a caminhar; Raymond tenta acompanha-lo, agarrando-se às poucas coisas que possui. Charlie fala dos mecanismos econômicos; Raymond repete suas frases, meias frases, ele fala com ele mesmo. Charlie compra passagens de avião, o seu corpo é carregado pelo espaço; Raymond não voa, repete que não voa, há centenas de voos que caem. Raymund perde seus programas de televisão, mas exige a rotina dos alimentos e Charlie, senhor do mundo, corre as ruas para localizar panquecas.
O coração de Charlie, viajando de dia ou de noite, observa a beleza da natureza, consegue descobrir que existe a magnitude de um mundo natural, de uma cama ao lado de uma janela, a importância de uma meia branca para dormir, o valor de cumprimentar e agradecer ao travesseiro que sabe do que é capaz.
Raymund entra no cassino, no mundo de Charlie, nada o assusta, as cores, as músicas, as prostitutas, as roletas, as máquinas. São formas da natureza que fogem a rotina de Raymund. Na mesa de jogos seis mãos movimentam 6 baralhos, os olhos de Raymund são mais rápidos e Charlie ganha 80 mil dólares, salvando, dessa forma, a sua empresa.

No quarto do cassino os dois descobrem que conseguiram entender a fragilidade dos limites, que balizam os dois mundos existentes dentro de cada um. Os mundos são reais, o amor e a vida também o são.
Raymund canta uma música, pedaços truncados por um autista, mas Charlie reconhece que era música que seu irmão mais velho cantava para que ele dormisse. Charlie entende o desespero de Raymond pela lembrança da água quente e do balanço do berço, foram momentos que ele salvara a sua vida.

As lembranças transformaram os irmãos, o trem parte da estação levando Raymond para a sua instituição, para as suas panquecas, bolos, Shakespeare, Pitágoras, programas de TV. Sempre na hora certa. Charlie retorna ao seu mundo sem panquecas, sem TV mas para participar de um universo empresarial mais sério e mais maduro.
Durante o filme, Raymund surta duas vezes. Em uma delas vivendo o seu momento de desespero Charlie grita e o chama, por engano, de “Rain Man”.

Meus leitores, Rain Man é um diabinho americano que traz chuvas, dinheiro e advinha o futuro. Ele tem as duas pernas, mas pode viver também na Serra da Mantiqueira, fumando seu cachimbinho e, com certeza, não criaríamos nenhum caso. Nós também o amaríamos.

Receita
Receita de panqueca americana com compota de maçã e chantilly.

Ingredientes: 1 colher de sopa de fermento em pó químico; 1 xícara e 3/4 farinha de trigo; 1/2 colher de chá de sal; 3 colheres e 1/2 de sopa de açúcar; 2 ovo inteiros; 2 claras; 1 colher de sopa de manteiga derretida; 1 colher de sopa de extrato de baunilha; 1xícara e 1/2 de leite; 1 colher e 1/2 de sopa de vinagre branco ou suco de limão; óleo para fritar

Modo de preparo:
Em uma vasilha grande misture todos os ingredientes secos. Em uma vasilha menor, misture o leite e o vinagre e deixe a mistura descansar por 10 minutos.
Em seguida junte os ovos inteiros, a manteiga derretida, o extrato de baunilha e misture apenas para incorporar. Bata as claras em neve e reserve. Junte os ingredientes molhados aos secos misturando bem até formar uma massa lisa e homogenia. Em seguida misture as claras incorporando delicadamente. Leve uma frigideira antiaderente ao fogo médio. Quando estiver bem quente, regue com um fio de óleo e espalhe sobre toda a superfície da panela de modo que fique uma camada bem fina. Com a ajuda de uma concha, despeje a massa no centro da frigideira formando um círculo no tamanho que desejar. Deixe formar bolhas na superfície da panqueca e então vire para fritar o outro lado. Este processo deve levar cerca de 1 minuto de cada lado.
Para a compota de maçã: 4 colheres de sopa de manteiga sem sal; 6 colheres de sopa de açúcar mascavo; 10 maçãs cortada em quartos e depois fatiadas; 1 colher de sopa de canela em pó; Suco de meio limão.

Modo de preparo: Leve todos os ingredientes para o fogo médio em uma panela grande, menos o suco de limão. Cozinhe até a compota engrossar e a maçã estar levemente dourada, cerca de 15 minutos. Mexer sempre. Desligue o fogo e adicione o suco de limão. Use para a panqueca ou guarde de vidros bem vedados e esterilizados em água quente. Sirva com chantilly!

Por Adriana Padoan