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sexta-feira 3 maio 2024
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Comilanças Históricas e Atuais – A história da picanha

Comilanças Históricas e Atuais – A história da picanha

O contador de história reuniu o povo na sala do conselho. A noite acabara de chegar à floresta, aos rios, à cabeceira da serra. Os homens sentaram-se no chão de terra batida; as mulheres acomodaram-se nos toscos bancos de madeira. As crianças encostaram-se nas paredes descoloridas, lugar bom para sonhar.
O contador de história convidou os ouvintes a embarcarem com ele num navio feito de pura imaginação; todos fecharam os olhos, pisaram em ondas feitas de nuvens, e partiram em direção ao mundo feito de palha de milho, gotas de chuva desviadas pelo vento, pingos de ouro, gotas de orvalho.
A primeira parada aconteceu na Montanha do Silêncio, na Caverna dos Cristais. Homens, mulheres e crianças da pré-história alimentavam-se de carne vermelha, retirada da carcaça dos animais. A fome estava fantasiada com a voracidade apropriada a três milhões de anos passados. Um membro daquele mundo insólito, em delírio acordado, pintava animais na lateral da caverna, com tinta de sangue e barro.

Os viajantes testemunharam o fato

A segunda parada margeou os mistérios do grande lago. Ali, na suavidade das águas, os homens encontraram o fogo, esquecido por aventureiros siderais. O fogo clareou a realidade, a natureza mostrou o corpo enluarado, a vida disparou na dianteira dos caminhantes e os alimentos giraram ao sabor das chamas alucinantes.

Os viajantes testemunharam o fato

Ao entardecer, seguindo a continuidade dos caminhos, chegaram ao Povoado do Despertar. Os habitantes desse povoado aproximaram-se dos bovinos, cantaram-lhes canções maravilhosas, temperaram o capim com ramos de açúcar, gotejaram mel nos bebedouros de águas transparentes. Os animais passaram a confiar nos homens, a acreditar no futuro possível. Esses acontecimentos percorreram a região do Egito, passaram pelas terras da Mesopotâmia, há 4 mil anos.

Os viajantes testemunharam o fato

Nos campos das begônias, nas proximidades das pirâmides os fazendeiros permitiram que os bovinos caminhassem livremente pelas planícies. O sobrinho do faraó Adormecido, cujo nome se perdeu na dança do areal, resolveu construir um cercado para o seu rebanho de bovinos. No cercado, mais aconchegado uns aos outros, os bois apaixonaram-se constantemente às lindas vacas do oriente, e o rebanho multiplicou-se. O Rio Nilo tornou-se encantado, suas águas corriam como leite dentro de jarros; o Rio Eufrates dançava as canções dos mercadores; o Rio Tigre contava as cabeças dos rebanhos que, mugindo tangos desastrados, matavam a sede em suas águas.

Os viajantes testemunharam o fato

Nas proximidades do Monte Santo, na reunião dos criadores do gabo branco, os viajantes desceram no porto de todos os nomes. A cidade portuária pôs em discussão a proposta de organização dos abatedores de gado, as técnicas utilizadas, as violências do processo.
Os romanos, conquistadores de novos mundos propuseram a criação de um espaço ideal para o abate. O gado necessitava de carinho, atenção, descanso e uma morte quase indolor. Os Hebreus propuseram uma sangria sem violência desnecessária, a morte chegando como fragmentos de um sonho. A qualidade da carne dependia, assim, dos processos de abate.

Os viajantes testemunharam o fato

Os passageiros, depois de várias paradas e partidas, chegaram à cidade de Lisboa. Os navios, com os cordames expostos, estavam de partida para o Brasil na época da colonização. Os marinheiros estavam lá, os comandantes gritavam ordens com voz de maresia, os jesuítas, responsáveis pela divulgação da fé oravam para dentro do corpo; um rebanho de centenas de cabeças de gado, vindo de Cabo Verde, marchou para o porão de carga dos navios.

Os viajantes testemunharam o fato

De Lisboa, o navio e os viajantes, deslizaram sobre as ondas do mar. Todos viviam as alegrias estendidas pelo convés. Na altura do Mar do Norte, uma tormenta sacudiu a embarcação, sacudiu o tempo, a memória, e os juramentos de amor feitos na quebra das horas. O navio foi projetado para o futuro, tombando nas alturas desreguladas do Rio Tietê, em São Paulo, no princípio dos anos 70.

Os viajantes testemunharam o fato

Nos anos 70, no Brasil, a política descobriu a arte de explorar os acontecimentos históricos, sociais, esportivos, artísticos. A seleção brasileira organizou a apresentação de um balé nos campos de futebol; a bola corria e os atletas brasileiros executavam um plié diante do adversário assustado; a bola retornava ao jogo e Tostão girava o corpo criando um Rond de Jambre aos olhos de seu marcador. O playboy Baby Pignatari, milionário, explorador de minas de cobre, vivia um mundo embalado por festas, carros, aviões, mulheres, atrizes de Hollywood, vários casamentos, grandes paixões passageiras, adorador de churrasco, frequentador dos nobres restaurantes.

Por essa época, os açougues brasileiros vendiam a picanha como um apêndice da alcatra ou do colchão duro. Muitas vezes, por excesso de gordura a picanha era descartada pelos restaurantes nobres no momento do preparo de um churrasco. Num restaurante cinco estrelas de São Paulo, em noite de grande inspiração, o playboy Baby Pignatari, na época apaixonadíssimo pela Princesa Ira von Furstenberg, lhe plagiava lindas declarações de amor na mesa 34 da ala nobre do restaurante.

Na cozinha do restaurante paulista, um churrasqueiro argentino preparou uma picanha no braseiro, usando tempero, técnica, delicadeza e jogo de cintura e a apresentou ao playboy Baby Pignatari. A carne, em espeto de prata, encantou todos os playboys da mesa, que acompanhavam o empresário do cobre. A rainha rendeu elogios ao assado, Baby Pignatari derreteu-se todo.

Dizem que o empresário mandou chamar o cozinheiro, querendo saber que corte fora servido a ele, o nome do corte e como fora preparado. O cozinheiro, imitando um cantor de tango, explicou que a carne, na Argentina, chamava-se Picanha, abandonada por muitos cozinheiros.

A noite desceu na capital paulista. O cozinheiro recebeu uma gorjeta de rechear a carteira; a picanha entrou para o cardápio nacional, o playboy delirou a princesa.
Os viajantes não testemunharam este fato.

Receita:
Picanha invertida recheada

Ingredientes: 1 peça de picanha (retirar o excesso de gordura); 4 tiras de bacon; 1 linguiça calabresa defumada; 10 unidades de tomate cereja; pimentão verde a gosto; 200 gramas de mussarela ralada; 200 gramas de gorgonzola; 2 ovos cozidos; sal; pimenta do reino e azeite. Palito de churrasco e linha culinária para fechar a carne.

Modo de fazer:
Com uma faca comprida e fina, abra uma cavidade começando pelo centro da picanha até pouco antes das duas laterais, tomando cuidado para não furar a carne. Após este processo, passe azeite por toda a carne, leve para selar em uma panela bem quente. Doure bem o lado da gordura. Com a parte de fora ainda quente, coloque a mão por dentro da cavidade e puxe a ponta até inverter totalmente o lado da gordura, deixando-o para dentro. Recheie com todos os ingredientes picados e misturados, lacrando a peça de carne com o palito e a linha. Leve para assar em forno pré-aquecido a 200 graus por 20 minutos. O tempo vai variar de acordo com o forno e com a preferência do ponto da carne. Retire do forno, retire o palito e a linha e fatie. Sirva com salada verde, arroz branco ou farofa.

Por Adriana Padoan